Mais além do fim do mar me trouxe o aprendizado das ondas. É instigante navegar no mar da memória.
Este é um work in progress que venho desenvolvendo desde 2010 enquanto pesquisa, quando ainda não havia um nome, apenas um impulso de fotografar. Em fevereiro de 2024, Mais além do fim do mar completará 10 anos como trabalho em diálogo com o público, desde a Exposição individual homônima, realizada na Praia do Cassino, em Rio Grande/RS, geografia de onde partem essas imagens.
Desde então, venho documentando anualmente as festividades em comemoração à Yabá Iemanjá, através da fotografia (analógica e digital), e mais recentemente, através da coleta de material audiovisual, como paisagens sonoras e vídeos. Este arquivo de mais de uma década vem sendo movimentado, o que gerou diferentes trabalhos, os quais venho apresentando em contextos de exposições coletivas, livros de artista, galerias virtuais em redes sociais, apresentações em eventos acadêmicos e artigos científicos. Em paralelo, venho realizando pesquisa sobre música brasileira com homenagens à Iemanjá e pesquisa sobre mitologia dos orixás, para adentrar aos aspectos simbólicos dos gestos e demais signos presentes nas imagens, tais como cores, plantas, alimentos, oferendas e danças.
O trecho da música Canto de Iemanjá, dos Afrosambas (1966) de Baden Powell e Vinicius de Moraes, foi a inspiração para o nome destas cartografias que venho construindo anualmente, através das imagens fotográficas. “A cantar, na maré que vai e na maré que vem / Do fim mais no fim do mar, bem mais além / Bem mais além do que o fim do mar, bem mais além”…
A festa de Iemanjá na Praia do Cassino é a segunda maior do país, fazendo um elo com a paisagem de Salvador, na Bahia, onde acontece a maior festividade, à beira do Mar do Rio Vermelho, no dia 2 de fevereiro.
A dimensão social e cultural desta festa para a cidade é muito valiosa, pela reunião de grande número de grupos de religiões de matriz africana, como Candomblé e Umbanda, que estão há décadas em atividade, vindos de diferentes partes do estado. Isso reflete a intensa presença negra no Estado, sobretudo em Rio Grande, uma cidade portuária, que é considerada a mais antiga do Rio Grande do Sul. Também pela intensa quantidade de público que visita a cidade para assistir as comemorações à beira mar, gerando grande fluxo no bairro, que por vezes dobra de moradores na estação do verão. A importância da festa foi reconhecida como Patrimônio Cultural, a nível estadual.
Historicamente, religiosidade e culto afro no Brasil são formas de resistência ao horror do processo escravatório. É uma maneira de se ligar aos ancestrais de África, uma forma de manutenção da memória e da cultura de diferentes povos, de diferentes geografias do continente mãe, que ficaram, por muito tempo, apagados do discurso historiográfico. Sua cultura tem permanecido e se reinventado através dos tempos pela oralidade, com os costumes perpassados entre coletividades que se unem em prol do culto de Orixá.
Orixá é natureza. Orixá é espírito dos elementais que habitam o planeta Terra. Iemanjá, em África, é cultuada pelos Yorubás no Rio Ògùn, na Nigéria. Ao chegar no Brasil, Iemanjá passou a ser cultuada no mar, como uma relação de conexão com as águas do Oceano Atlântico, que chegam até as terras ancestrais. Este mar é como um grande útero. Iemanjá assume o arquétipo da mãe, uma grande doadora, representada em África como uma mulher negra, gorda, de seios fartos, que nutre todos os seus filhos.
Na Praia do Cassino, as festividades acontecem predominantemente no dia 1 de fevereiro, ao longo de todo o dia e noite, até o amanhecer do dia 2 de fevereiro. Em Rio Grande, no dia 2 é comemorado o dia de Nossa Senhora dos Navegantes.
O azul do mar é a cor de Iemanjá. Flores brancas e azuis, espelhos, pérolas, perfumes, canjica branca e espumantes que lembram as bolhas das águas salgadas do mar lhe são muito oferecidos. Ela dança graciosa, e seu canto é choroso, como uma mãe que sofre ao ver seu filho sofrer.
Esta é a versão pandêmica de Mais além do fim do mar. Conta com 20 imagens das homenagens que aconteceram entre 2021 e 2023, com restrições sanitárias. Em 2021 e 2023, a procissão de Iemanjá, que tem décadas de tradição, foi interrompida para evitar aglomerações, retornando somente em 2023. Também as tendas, os terreiros, e as ações à beira mar foram suspensas neste período. As oferendas passaram a acontecer com protocolos de distanciamento social. O campo do Praião, que por anos vi lotado de barracas de pessoas de vários estados e cidades, estava vazio. No primeiro ano, ainda sem a vacina, apenas a Urumi, entidade que representa e organiza a festa de Iemanjá no Cassino, montou um barracão, de onde foi feita uma live com representantes da cultura de terreiro.
Minhas imagens, sempre, ao longo dos anos de pesquisa, centraram-se em acompanhar os cultos à beira mar e em acompanhar o grupo da Tenda Espírita Santa Catarina, da Caciqua Dona Julietinha (In memorian), com o processo de vestimenta, aromatização com perfumes e ornamentação da estátua de Iemanjá, feito pelo grupo há mais de duas décadas. A estátua é uma obra do escultor riograndino Gobbi, uma representação mais ocidentalizada de Iemanjá, que fica em cima da ruína de uma antiga “girafa”, como eram conhecidas as antigas casas de salvas vidas, construções de concreto que ficavam nas dunas em meados do século XX. A estátua foi posicionada de costas para o mar, como sendo a representação do próprio mar abraçando o bairro.
Mais além do fim do mar – anos pandêmicos fala sobre gestos de fé em meio a um contexto histórico e social de medo, sobre a influência dos orixás nas representações simbólicas da cultura afro-brasileira e sobre as histórias que ligam a paisagem de Rio Grande à paisagem de Salvador, através da cultura, da memória, da ancestralidade. Em 2023, poder documentar o retorno com a festa, com o fim da pandemia de Covid-19.
Em paralelo, essa seleção de imagens de anos da pandemia também revela a expansão urbana do bairro, e o que chamo de a ruína da paisagem, quando o céu azul que antes era o segundo plano nas imagens dos rituais na estátua, agora será substituído por uma construção de um prédio, voltado para poucos moradores que terão vista privilegiada para o mar e para a festa de Iemanjá.